terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um rosto reposto


Em Setembro de 2006, este blog saíu da terra. Literalmente. Tinha feito na Páscoa desse ano uma "reportagem" sobre uma enxertia de vinha, assegurada pelo Manuel Dias. É reconhecido na aldeia como um dos mestres desta arte. Ficaram registadas as mãos, os gestos seguros e precisos. Tanto me concentrei na descrição pormenorizada da operação, que me esqueci do mais evidente: um simples retrato... Desde então, poucas vezes tive oportunidade de corrigir esta falta. É verdade que nos encontramos poucas vezes na aldeia. Sem mais comentários, aqui ficam algumas pobres fotos que tirei na Páscoa de 2009, na garagem/oficina do Reis, que aparece como "artista convidado".

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Memórias de juventude - I




Pastora de rebanhos

Nas décadas de 70 e 80, as férias de verão em Vale de Janeiro eram uma experiência que confirmava a teoria da relatividade de Einstein. Foi naquela aldeia, então isolada no meio do nada, que passei os dias escaldantes de Verão, numa espécie de meditação transcendental, que me transportava para um tempo incerto, futuro e passado, e para um espaço físico e dinâmico onde era preciso andar, andar, andar e andar para arrancar da terra a mais simples batata que serviria de ingrediente para a refeição do meio dia...
Uma das actividades em que ocupei esse tempo de férias foi guardar um “rebanho”, humilde e numericamente composto por ... três cabeças de gado: duas ovelhas e uma cabra!
Algumas vezes, a minha prima Dália - bela jovem alfacinha do bairro da Ajuda, que vinha partir os empedernidos corações dos rapazes da aldeia e arredores - acompanhava-me nas minhas tardes de pastoreio; ocupávamos o tempo com indiscritíveis sessões de jogo do “fito”, interrompidas por frequentes excursões à ameixeira que ficava do outro lado da encosta; nunca mais voltámos a comer raínhas-cláudias tão deliciosas! É claro que os assaltos à ameixiera às seis horas da tarde produziam os devidos efeitos no nosso aparelho gastro-intestinal...
Mas, voltando ao meu rebanho: a cabra chamava-se Lila, era de cor ruça-avermelhada e tinha o grande defeito de não se deixar ordenhar, o que vinha assim confirmar a tese de que ali nada era obtido sem transpirar a valer ... Convencer a Lila a participar com uma simples tigela de leite na cadeia alimentar doméstica era tarefa que só não deixou traumas porque aquele desgaste de energia seria devidamente compensado pelos efémeros queijos frescos  preparados pela minha mãe.
A ordenha tinha de começar por uma demorada sessão de massagem às pendurezas mamárias da Lila, massagem que nem sempre era seguida dos efeitos esperados em termos de produtividade lacticínia; outras vezes, findo todo o esforço físico e já depois de praticamente cheio o recipiente do leite, a Lila dava uma espécie de pinote com uma das patas traseiras e lá se iam embora os queijinhos ... é claro que quando tal acontecia a pobre da cabra tinha direito a uma monumental sova ministrada pela minha própria pessoa mediante recurso a um objecto mais ou menos trabalhado pela mão do homem, de tamanho respeitável, o qual podia variar do “pequeno” estadulho ao comprido “lareiro.
As outras duas cabeças de gado eram uma ovelha e a sua cria. “Têla”, era o nome que o meu pai tinha posto à  pequena ovelhinha.
 Lembro-me de que era total a minha incompetência para o desempenho da actividade pastoril, pois estava constantemente a perder o rebanho. Isso acontecia porque mergulhava profundamente na leitura. Quando deixava de ouvir o barulho das mastigadelas  e das dentadas na tenra rama das giestas temia sempre o pior. Nessas alturas, a Têla era a minha salvação. Bastava chamar por ela para  saber do paradeiro dos três animais e assim averiguar se se encontravam em zona territorial que constituísse ameaça para hortas ou pastagens de  terceiros.
Uma das vezes levei na sacola a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França (Carlos Magno) (livro que pedira emprestado e que devolvi, devidamente restaurado, ao respectivo detentor). De repente,  nessa tarde, despertando das hipnóticas aventuras de Roldão em Roncesvales, chamei pela Têla, mas, em resposta, apenas se fez ouvir o silêncio natural da Santa Paz do Senhor. Dos três cúmplices ovídeos, nem um barulhinho... A Têla decidiu, daquela vez, não responder ao meu insistente chamamento. Foi então que senti a pressão arterial a aumentar, o coração a bater desordenadamente e uma súbita invasão de suores frios ... As minhas suspeitas confirmaram-se:
 - Lá foram as couves da tia Miquelina e os feijões da tia Zulmira!!! Pois claro: qual é o animal que, mesmo sendo dotado de poderosas mandíbulas, come silvas, urtigas, tojos e carqueijas se puder comer à descrição couves frescas e feijões?! O esforço muscular bocal e a qualidade do repasto não têm comparação! Não me recordo se houve ressarcimento de danos, ou se os proprietários lesados terão sequer chegado a saber a quem pertenciam os animais que naquela tarde, em acção aparentemente concertada, haviam perpretado tão sorrateiro ataque às respectivas hortaliças.              
Uma tarde, depois do almoço, saí à rua e deparei com uma cena aterradora: estava a Têla pendurada numa porta de madeira, de cabeça para baixo, pingando grossas gotas de sangue, à espera de ser esfolada, esquarteja e cozinhada,  para finalmente saciar os ávidos estômagos  de quem conseguisse ingerir tão tenra carne! Teve – ovelhinha indefesa – o terrível destino dos cordeiros berberes em tempo de ramadão...
Aquela cena, que frequentemente me vem à memória, constituiu para mim fundamento de rescisão unilateral de contrato de trabalho de pastoreio sazonal. Esse “desemprego técnico” permitiu-me preencher o resto dos dias das minhas férias de verão com proveitosas sessões de leitura, intercaladas com pequenos trabalhos domésticos e iniciações aos labores femininos...  




Helena Nunes
Abraços ao nosso público (especialmente aos nossos três seguidores, Eugénia, Susana e Miguel)
Luxemburo, 11 de Fevereiro de 2010