sábado, 7 de janeiro de 2012

“Na era de 1958, foi perdida uma menina”


Página de pequena agenda com registo da data e local do desaparecimento
No ano de 1958, numa tarde quente do mês de Julho, a pequena Maria Virgínia, de três anos, foi apanhar cerejas com a sua tia Miquelina. Passada a encruzilhada do alto do Barreiro, a menina, talvez por estar já cansada, quis voltar para casa. Deu meia volta e, chegada de novo à encuzilhada, meteu por um carreiro, tomando, sem saber, um caminho contrário à aldeia que a levou sem rumo por sítios e veredas desconhecidos.

As horas passaram e a noite chegou sem sinal da criança, deixando os pais, os familiares e todo o povo em grande aflição. Fizeram-se promessas à Senhora da Saúde e implorou-se a protecção de S. Tiago, pois era grande o temor aos lobos que, naquela época, mesmo no Verão, rondavam de perto a aldeia.

A noite devia estar ventosa, pois um familiar da menina, o tio Américo, conseguiu distinguir, no meio daquele silêncio pesado, uns gemidos ténues vindos da encosta da Senhora da Saúde. Subiu o monte para tentar localizar a sua origem, mas, à medida que subia, os gemidos deixavam de se ouvir; voltava então a descer a encosta e de novo recomeçavam. Várias vezes subiu e desceu o tio Américo a encosta sem conseguir detectar de onde provinham aqueles queixumes trazidos pelo vento.

Durante toda a noite a população procurou a criança em poços, riachos e buracos, caminhos e carreiros, todos os locais que pudessem constituir perigo para a sua vida. Mas em vão.

No dia seguinte, juntaram-se ao resto do povo todas as crianças da escola, que a professora, D. Preciosa, de Vilar de Ossos, dispensou das actividades escolares a fim de também elas poderem participar nas buscas. E assim, todos juntos, começaram a trilhar a encosta, passo a passo, metro a metro.
Pelas duas da tarde, no local do Campanário da Senhora da Saúde, um cão, de nome Piripiri, pertencente ao Gabriel dos Anjos, uma das crianças que participava nas buscas, farejava com insistência num certo sítio, agitando a cauda em tal alvoroço que o António Fontes, não querendo deixar passar a eventualidade de uma refeição melhorada, se pôs a fazer oportuna pontaria, imaginando algum coelhito ou perdiz ou qualquer outro animal comestível que naquela altura abundavam pelos montes. Subitamente, e para grande alegria do povo, saiu do refúgio, assustada e enfraquecida por uma noite passada ao relento, ao frio e em total solidão, a “menina perdida”, nome por que ficou conhecida durante muitos anos.

Deste episódio conta hoje a sua protagonista que apenas se recorda de descer o caminho ao colo de alguém, seguida de muitas crianças e de a tia Lídia Veiga, que fora levar o almoço aos ceifeiros, lhe perguntar se tinha fome e se queria alguma coisa.
“Quero água”, respondeu.
“E queres sopa? Queres arroz?”, insistiu a tia Lídia.
“Quero pão”, balbuciou a pequena.
Afinal, pão e água, bem mais do que a resposta ao instinto natural de querer matar a fome e a sede, são a essência, senão da vida, pelo menos da sobrevivência.

(PS: agradeço à Maria Virgínia Morais por me ter relatado este episódio)

 Foto: Nuno Fontes Nunes.

Maria Helena Nunes
Vale de Janeiro, 25 de Dezembro de 2011