sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

História Passada na Coutada


Da esquerda para a direita: Justino, Tio Lázaro, tio do poeta, Tó Zé, António, marido da Teresa e Tio Torcato
Se bem me lembro, o petisco neste dia foram amêijoas (é o que parece que está dentro do tacho, não é?)

Chegaram recentemente à redacção estes versos de um velho amigo e ainda familiar, perdido há anos na Serra de Sintra mas que não esquece as origens nem as histórias da infância. Aqui fica a "História Passada na Coutada" do Justino Rodrigues. Se mais almas de poetas houver por aí escondidas, não hesitem em enviar. Anonimato garantido se requerido e devidamente justificado... Recado para o Tio Chico: a parte restante da sua "Vida Atribulada" seguirá dentro em breve.

História Passada na Coutada

Tinha eu 6 anos de idade,
Quando tudo começou
Guardava as vacas no lameiro
Quando a galinha cantou

Na época na aldeia
Não havia televisão 
Por isso à noite na lareira
Era só bruxedo, mortes e confusão

Andava com o meu irmão Eduardo
As vacas a pastar
Andávamos na brincadeira
Ouvimos a galinha cantar

Ficámos cagados de medo
Que a bruxa ia atacar
Escondemo‑nos atrás da fraga
Foi grande a aflição

Era tanto o medo
Que até agarrámos o cão
Lá nos pusemos à escuta
Até que coragem chegou

A galinha cantava
Mas que susto nos pregou
Lá fomos andando lameiro abaixo
De medo íamos a tremer
Não sabíamos o que nos esperava
Pois a bruxa podia aparecer

Passámos o ribeiro
Com o cão a acompanhar
Mas lá fomos nós
Para a bruxa apanhar

Andava com tanta fome
Que para nós logo correu
Demos-lhe o pão da merenda
Ela logo o comeu

Saiu-nos então o medo
Vimos que era uma galinha
Só não sabíamos
Era de onde a galinha vinha

Lá veio no bornal da merenda
Direitinha ao galinheiro
Vínhamos os dois a correr
Para ver quem contava primeiro

A minha mãe ralhou
Pensou que a tínhamos roubado
E não acreditava
Que a tinha encontrado

Dois meses se passaram
Mas sem nada acontecer
Até que um certo domingo
O dono resolveu aparecer

Quando o homem a viu
Começou logo a rir
Porque estava nas Cavages
Lá a viu ele partir

O falecido Chico das Cavages
Era o dono da pobrezinha
Ficou admirado
Quando viu a galinha

Minha mãe ficou envergonhada
Pensou que a tínhamos ido buscar
Por isso ainda estava
Com vontade de ralhar

Então o Ti Chico a contar
Como tudo se passou
Estava sentado na escada
Quando o gavião a levou

Nunca mais ele pensou
A galinha voltar a ver
Por isso deixou a galinha
Para uma canja fazer

E com isto me despeço
Não vos vou maçar mais
Mas primeiro
Um abraço deste grande amigo
Da freguesia de VALE DE JANEIRO

Isto é para começar
Estou mesmo a ver
Vou dormir a pensar
No que vou voltar a escrever

Justino Rodrigues

sábado, 7 de janeiro de 2012

“Na era de 1958, foi perdida uma menina”


Página de pequena agenda com registo da data e local do desaparecimento
No ano de 1958, numa tarde quente do mês de Julho, a pequena Maria Virgínia, de três anos, foi apanhar cerejas com a sua tia Miquelina. Passada a encruzilhada do alto do Barreiro, a menina, talvez por estar já cansada, quis voltar para casa. Deu meia volta e, chegada de novo à encuzilhada, meteu por um carreiro, tomando, sem saber, um caminho contrário à aldeia que a levou sem rumo por sítios e veredas desconhecidos.

As horas passaram e a noite chegou sem sinal da criança, deixando os pais, os familiares e todo o povo em grande aflição. Fizeram-se promessas à Senhora da Saúde e implorou-se a protecção de S. Tiago, pois era grande o temor aos lobos que, naquela época, mesmo no Verão, rondavam de perto a aldeia.

A noite devia estar ventosa, pois um familiar da menina, o tio Américo, conseguiu distinguir, no meio daquele silêncio pesado, uns gemidos ténues vindos da encosta da Senhora da Saúde. Subiu o monte para tentar localizar a sua origem, mas, à medida que subia, os gemidos deixavam de se ouvir; voltava então a descer a encosta e de novo recomeçavam. Várias vezes subiu e desceu o tio Américo a encosta sem conseguir detectar de onde provinham aqueles queixumes trazidos pelo vento.

Durante toda a noite a população procurou a criança em poços, riachos e buracos, caminhos e carreiros, todos os locais que pudessem constituir perigo para a sua vida. Mas em vão.

No dia seguinte, juntaram-se ao resto do povo todas as crianças da escola, que a professora, D. Preciosa, de Vilar de Ossos, dispensou das actividades escolares a fim de também elas poderem participar nas buscas. E assim, todos juntos, começaram a trilhar a encosta, passo a passo, metro a metro.
Pelas duas da tarde, no local do Campanário da Senhora da Saúde, um cão, de nome Piripiri, pertencente ao Gabriel dos Anjos, uma das crianças que participava nas buscas, farejava com insistência num certo sítio, agitando a cauda em tal alvoroço que o António Fontes, não querendo deixar passar a eventualidade de uma refeição melhorada, se pôs a fazer oportuna pontaria, imaginando algum coelhito ou perdiz ou qualquer outro animal comestível que naquela altura abundavam pelos montes. Subitamente, e para grande alegria do povo, saiu do refúgio, assustada e enfraquecida por uma noite passada ao relento, ao frio e em total solidão, a “menina perdida”, nome por que ficou conhecida durante muitos anos.

Deste episódio conta hoje a sua protagonista que apenas se recorda de descer o caminho ao colo de alguém, seguida de muitas crianças e de a tia Lídia Veiga, que fora levar o almoço aos ceifeiros, lhe perguntar se tinha fome e se queria alguma coisa.
“Quero água”, respondeu.
“E queres sopa? Queres arroz?”, insistiu a tia Lídia.
“Quero pão”, balbuciou a pequena.
Afinal, pão e água, bem mais do que a resposta ao instinto natural de querer matar a fome e a sede, são a essência, senão da vida, pelo menos da sobrevivência.

(PS: agradeço à Maria Virgínia Morais por me ter relatado este episódio)

 Foto: Nuno Fontes Nunes.

Maria Helena Nunes
Vale de Janeiro, 25 de Dezembro de 2011