sábado, 8 de outubro de 2011

Uma Vida Atribulada

Vale de Janeiro é uma terra de poetas. Toda a gente nalgum momento fez quadras (sobretudo os mais antigos) e já se publicaram aqui alguns versos de uma famosa poetisa... Aqui vão então as primeiras quadras de uma obra intitulada “Uma Vida Atribulada” do Sr. Francisco dos Anjos (o Tio Chico). O relato termina (por agora) no fim da tropa. Muito resta ainda por contar... Obrigado Tio Chico!



Vou então começar
Que não tenho mais que fazer
Mas isto tudo é verdade
O que aqui vou escrever

Quem a mim me conhece
Vai dizer que tenho razão
Vou contar a minha vida
Desde a minha criação

Minha mãe era pobre
Não tinha pão para me dar
Eu não sabia porquê
Mas via-a sempre a chorar

Eu via-a tão aflita
Também começava a chorar
0 que tem, oh minha mãe?
Não tenho pão p’ra te dar

Que queres que eu te faça
Não posso ir roubar
E com bons modos me dizia:
“Meu filho vai-o ganhar”

Eu não posso ir ganhar
Só se for pedir esmola
Eu ainda sou pequenino e
Tenho que ir à escola

Minha mãe você bem sabe
Que é preciso saber ler
Pois se eu for para a tropa
Quem é que me vai escrever?

Eu então dizia assim
Deixe lá oh minha mãe
Deus também deixou escrito
Com fome não morre ninguém


Isto assim se foi passando
Até que cheguei aos 10 anos
Depois de sair da escola
Fui então servir uns amos

Eu então fui a servir
Não era eu o primeiro
P’ra onde havia de ir
Fui então para Vale de Janeiro

Quando minha mãe me levou
Eu ia todo contente
Porque a minha mãe me dizia assim
“vais p’ró pé de boa gente”

Lá que seja boa gente
Eu nisso também quero crer
Se são bons ou maus
No fim estamos p’ra ver

Tudo que a minha mãe dizia
Para mim era brincadeira
Quem haviam de ser os amos?
Eram os d’Assobreira

Estive lá 8 anos
8 anos de benção
Nunca eu tinha pensado
Arranjar este (outro) patrão

Mas isto caros leitores
São coisas que têm de ser
Até que chegou o dia
Em que nos fomos aborrecer

Oh! que dia tão maldito
Que dia tão infeliz
Quando cheguei à “Portela”
É que pensei no que fiz

Depois de ter feito o mal
Então é que reparei
Não arranjo mais patrões
Como aqueles que deixei

Mas vamos embora à frente
As coisas não serão feias
Fui dali para Curopos
Para casa dos Correias

Tudo era muito lindo
Mas foi quando lá cheguei
Mas eles não eram patrões
Como aqueles que deixei

Como aqueles que deixei
Nem eram bons de encontrar
Lá estive em casa dos Correias
Até que fui para militar

Lá andei 19 meses
Que tempo tão encantado
Nunca mais volto a ter
Vida como a de soldado

Quando me fui a fardar
Ainda hoje me dá a risa
Se as calças eram grandes
Maior era a camisa

Eu estive mais de uma hora
Para me conseguir fardar
Nisto chega um Sargento
Deste modo a falar

Não te enrasques meu rapaz
Como tu ainda há mais
­‑ Diz-me lá de onde és
- Eu pertenço a Vinhais

Que tu és de Vinhais
Isso eu já sabia
Eu queria que me dissesses
Qual a tua freguesia


Você devia saber
Qual a minha freguesia
Porque eu já entreguei
Umas guias que trazia

As guias que tu trazias
Não têm a tua residência
Diz lá de onde tu és
Tem lá um pouco de paciência

Já estava tão “chateado”
E bastante aborrecido
As guias que eu trazia
Têm lá tudo esclarecido

Lá andámos na recruta
Parecíamos uns tontos
No fim dos 4 meses
Passámos então a prontos

Passámos então a prontos
Ficámos a ser soldados
Depois fomos escolhidos
Para ir prá escola de cabos

Mas eu tive pouca sorte
Sempre a tive infelizmente
Passados uns 20 dias
Encontrei-me então doente

Encontrei-me então doente
Estive bastante mal
Por acaso ainda estive
30 dias no hospital

Não tirei a escola de cabos
Pouca sorte foi a minha
Que me havia de passar
Andei todo o ano na “linha”

Quando rendia a parada
Ficava logo a tremer
Porque eu já sabia
0 que me ia acontecer

Aquilo era de tremer
Quando chovia e nevava
Aquilo era muito frio
Com vergonha não chorava

Eu bem olhava para o relógio
Para ver quando chegava a minha hora
Lá estava na guarita
Deitando a cabeça de fora

Quando chovia e nevava
É que era precisa paciência
Sempre que os oficiais entravam
Tinha que fazer a continência

Se acaso não era bem feita
Diziam-no logo na presença
Então já passaste a pronto
E ainda näo sabes fazer a continência

Era do sargento ao comandante
Do comandante ao furriel
Não faziarn mais nada
Do que entrar ou saír do quartel

Mas ainda não pára aqui
Com 600 000 mil diabos
Mas no ano adiante
Tirei nova escola de cabos

Aquilo é que era de rir
Toda a gente do batalhão
Com 20 meses de tropa
Tirar nova instrução

Sempre que ia para a instrução
Enchia-os de “fihos da puta”
Pois já havia 20 meses
Que tinha tirado a recruta


Quando era da ginástica
Era boa a instrução
Mas o pior era quando
Íamos rastejando pelo chão

Para tirar a escola de cabos
Aquilo foi um bico de obra
Rastejando tal e qual
Como sendo uma cobra

No último dia de instrução
Aquilo foi engraçado
Chamaram então de parte
Aquele que foi aprovado

Por acaso eu fui um deles
Eu não minto meus senhores
E vou-Ihes já dizer
Quantos foram os meus valores

Não me posso estender muito
Se não ainda dizem que minto
Os valores que eu tirei
Foram dez mais cinco (15)

Foi assim a minha vida
Enquanto fui militar
Mas vidinha como aquela
É difícil de encontrar

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